No início de setembro de 2002, Paulo Maluf, então candidato a governador de São Paulo, caminhava pelo varejão da Ceagesp, na capital. Enquanto cumprimentava consumidores e comerciantes, repetiu a promessa pela qual seria lembrado pelas décadas seguintes: se eleito, a Rota iria para a rua.
“A Rota vem, sim, e vem violenta. Vem quente”, afirmou, em referência à tropa de elite da Polícia Militar. “Hoje, o policial teme enfrentar bandidos porque pode acabar preso. No meu governo, o soldado terá orgulho de usar farda. Caso reaja a uma agressão em legítima defesa, não será nem mesmo processado”, prosseguiu Maluf.
Mais de 20 anos depois, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), pupilo do bolsonarismo, também tem adotado práticas e discursos duros no campo da segurança pública. Sob a gestão do secretário Guilherme Derrite, o número de mortos pela polícia disparou no primeiro trimestre de 2024 em comparação ao período homólogo.
A alta foi puxada em meio às mortes na Baixada Santista, após o assassinato do soldado da Rota Samuel Wesley Cosmo, durante patrulhamento em uma favela na periferia de Santos. A gestão Tarcísio intensificou a Operação Verão e a polícia matou 56 pessoas na região em poucos meses.
Questionado sobre queixa de algumas entidades ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), diante da escalada da violência policial e supostas violações de direitos humanos, Tarcísio respondeu que não estava “nem aí”.
“Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse o governador, que desponta como principal candidato do bolsonarismo para as eleições presidenciais de 2026.
Os posicionamentos de Maluf e de lideranças do bolsonarismo, como Tarcísio, acenam para o mesmo perfil de eleitor. Em sua tese de doutorado, Caio Marcondes Barbosa, doutor em ciência política e pesquisador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP, afirma que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) herdou os votos dos simpatizantes do malufismo na capital paulista.
Na sua pesquisa, Barbosa baseou-se em estudos do sociológo Antônio Flávio Pierucci no período pós-redemocratização. Partindo das eleições de Jânio Quadros para prefeito em 1985 e de Maluf para governador em 1986, Pierucci entrevistou cabos eleitorais desses candidatos e encontrou o que ele chamou de “nova direita”.
Observando a concentração de votos na capital, o sociólogo delimitou geograficamente onde se localizava esse grupo conservador: na região do começo da zona leste, como os bairros da Mooca e do Tatuapé, até a zona norte, como Santana e Tucuruvi.
“Essa região histórica foi onde os imigrantes inicialmente se estabeleceram no começo do século 20”, diz Barbosa. “Era uma região mais de classe média baixa, tradicional. De um conservadorismo moral, menos alinhado, pelo menos até aquele momento, a uma pauta liberal econômica”, afirma.
Analisando o mapa eleitoral da cidade nas eleições presidenciais de 2018, Barbosa notou que esse mesmo reduto janista e malufista deu mais de 50% dos votos para Bolsonaro já no primeiro turno. O pesquisador foi então às ruas para entrevistar os eleitores do ex-presidente nesses bairros e entender se havia continuidade com a “nova direita” identificada por Pierucci. A conclusão de Barbosa foi positiva.
“Eu encontrei eleitores mais velhos que também eram malufistas, ou ouvia muito que os pais eram malufistas. Tinha um elo entre essa base do Maluf e a direita bolsonarista”, diz ele. “Houve uma permanência grande das gerações nesses bairros, que foram ficando na região e passando esses valores”, afirma.
O conservadorismo moral permaneceu, segundo Barbosa. O que mudou é que a direita da região hoje se alinha a valores mais liberais na economia, que não eram tão presentes na década de 1980.
Pierucci, o sociólogo que estudou o malufismo, dizia que os eleitores de Maluf queriam um Estado realizador, que fizesse muitas obras e garantisse a segurança. E que eles eram anti-igualitários —se sentiam ameaçados pelos migrantes nordestinos, por pessoas em situação de vulnerabilidade, pelos homossexuais, entre outros grupos marginalizados. Uma descrição que não dá conta de explicar o bolsonarismo, mas que também é observada neste grupo.
Nas redes sociais, com frequência surgem comparações entre Tarcísio e Maluf, que já comandou o estado e a capital, influenciou disputas locais por anos, ainda tem sua figura resgatada em eleições regionais e, sobretudo, é associado a escândalos de corrupção.
Esse paralelo é traçado sobre dois ângulos. Ambos compartilham um discurso duro no campo da segurança pública e trabalham o marketing político em torno da ideia de que fazem acontecer –que conduzem grandes obras e projetos.
“Esse combo de realizador com foco na segurança é malufista. Só tira o elemento da corrupção”, diz Barbosa. “Tarcísio conseguiu formar essa imagem de realizador, foi ministro de Infraestrutura. Essa imagem também era a de Maluf, a de um engenheiro sempre realizando grandes obras. Esse aspecto de colocar o capacete e verificar as obras remete muito, mexe com esse imaginário malufista.”
A direita bolsonarista, inclusive o próprio ex-presidente, exalta frequentemente a capacidade de Tarcísio de realizar projetos. O governador também costuma publicar nas redes sociais conteúdos gravados em visitas às obras, muitas vezes vestindo capacete e colete. Na última semana, a vereadora Sonaira Fernandes, ex-secretária de Tarcísio, postou uma foto do governador com um capacete azul e a legenda: “Tarcisão da Construção”.
Coordenador do Laboratório de Política e Governo da Unesp, o professor Milton Lahuerta afirma que o tecnocratismo aproxima Tarcísio de Maluf. “Tem a ver com a formação, ambos engenheiros, uma matriz cartesiana. Uma concepção de mundo que passa por esse viés tecnocrático”, diz.
Lahuerta também afirma que os dois pensam semelhante sobre o tema da segurança pública, especialmente a respeito do fortalecimento da Polícia Militar. “Maluf nunca chegou nesse nível de defender que PMs passem a fazer investigação, usurpando a Polícia Civil. Mas sempre foi um grande propositor da Rota, e o Derrite é totalmente vinculado a esse sistema.”
Enquanto Maluf foi ungido pelos militares para a vida pública, Tarcísio foi apadrinhado por Bolsonaro. O professor vê, porém, algumas diferenças entre os dois. Ele afirma que o governador depende mais do bolsonarismo do que Maluf foi dos militares. Ao mesmo tempo, muito associado ao estado, Maluf não conseguiu projeção nacional. “Penso que Tarcísio tem muito mais viabilidade nacional do que Maluf jamais pôde ter”, diz Lahuerta.
E há quem rejeite a comparação como um todo, como Marco Antonio Carvalho Teixeira, pesquisador da Fundação Getulio Vargas. Ele diz que, ainda que as questões sejam parecidas, o contexto é muito diferente, considerando que Maluf ascendeu durante o regime militar. “Não dá para dizer que Tarcísio é obreiro. Tarcísio entrega concessão, privatização. Maluf entregava minhocão, pontes, viadutos.”