“Eu ganhei dinheiro para que eles possam fazer o que quiserem.”
É o que Walther Moreira Salles (1912-2001) costumava responder quando lhe perguntavam se os filhos não assumiriam os negócios da família, conta o jornalista Luis Nassif, biógrafo do diplomata, banqueiro e empresário brasileiro.
E ele ganhou muito dinheiro. Tanto é que, dos 12 homens mais ricos do Brasil atualmente, quatro são filhos de Walther: os irmãos Fernando, Pedro, João e Walter Salles Jr., diretor do premiado filme Ainda Estou Aqui, que neste domingo (2/3) concorre a três estatuetas do Oscar — de Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz, para a protagonista Fernanda Torres.
Com uma fortuna estimada em R$ 26,4 bilhões, segundo o ranking de bilionários brasileiros da revista Forbes, Walter Salles Jr. é hoje o 11º homem mais rico do Brasil, empatado com o irmão João Moreira Salles, diretor de documentários como Notícias de uma guerra particular (1999) e Santiago (2006), e fundador da revista Piauí e do instituto de divulgação científica Serrapilheira.
Walter Salles também é atualmente o terceiro diretor de cinema mais rico do mundo, de acordo com a Forbes, atrás apenas de Steven Spielberg, com uma fortuna estimada em US$ 5,3 bilhões (R$ 30,3 bilhões), e de George Lucas, com um patrimônio de US$ 5,2 bilhões (R$ 29,8 bilhões).
Mais alto no ranking dos bilionários brasileiros estão Fernando Moreira Salles – que é sócio da editora Companhia das Letras — e Pedro Moreira Salles, o único a seguir os passos do pai no setor bancário e atualmente copresidente do conselho de administração do Itaú Unibanco.
Com fortunas estimadas em R$ 38,45 bilhões e R$ 36,15 bilhões, respectivamente, Fernando e Pedro ocupam os postos de sexto e sétimo homens mais ricos do país.
Mas como foi que os Moreiras Salles construíram a fortuna que os coloca no top 0,00001% de renda do Brasil – os mais ricos entre os ricos?
Entenda a trajetória que começa numa casa comercial no sul de Minas, passa por um mineral que promete produzir baterias para ônibus elétricos recarregáveis em apenas 10 minutos, e inclui uma fazenda de laranja e cana-de-açúcar quase do tamanho de Natal, além das sandálias Havaianas que talvez estejam nos seus pés neste exato momento.
O patriarca e o dinheiro do café
João Moreira Salles (1888-1968), nasceu em Cambuí, no Sul de Minas, filho de agricultores. Em 1918, ele se mudou para Poços de Caldas (MG), onde criou a Casa Moreira Salles, atuando como comerciante e correspondente bancário — agente que, na falta de banco no local, exercia parte de suas funções.
Na Casa Moreira Salles, em Poços de Caldas (MG), o patriarca João Moreira Salles atuava como correspondente bancário, chegando a representar 13 bancos
Em 1924, um departamento da casa conseguiu autorização da recém-criada Inspetoria Geral dos Bancos (uma espécie de antecessora do atual Banco Central) para atuar como instituição financeira.
“É preciso lembrar que, nessa época, no Brasil, a população rural é amplamente predominante”, observa Fernando Nogueira da Costa, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e autor do livro Brasil dos Bancos (Edusp, 2012).
“No censo de 1940, só 31% da população morava em cidades. Então os comerciantes e caixeiros viajantes vendiam as mercadorias, e os produtores de café do sul de Minas só na safra tinham condição de vender o café e arcar com os custos”, lembra o especialista em história bancária.
“Muitos desses comerciantes passam a receber o pagamento sob forma de produção, a partir da safra. Com isso, João Moreira Salles passa a ser um negociante exportador de café.”
Em 1933, Walther Moreira Salles — um dos seis filhos do patriarca, sendo que dois morreram ainda na infância — entrou como sócio na casa bancária, enquanto o pai mudou para Santos e passou a se dedicar mais de perto aos negócios de café.
O banqueiro embaixador
Walther se formou em direito na faculdade do Largo São Francisco em 1936 e, já à frente dos negócios, liderou uma fusão da Casa Bancária Moreira Salles com outras duas instituições financeiras da região, criando em 1940 o Banco Moreira Salles, com sede em Poços de Caldas.
“Poços de Caldas naquele período era como se fosse uma capital do Brasil nas temporadas [de veraneio]”, diz Nassif, autor da biografia Walther Moreira Salles: O banqueiro-embaixador e a construção do Brasil (Cia. das Letras, 2019 )e ele mesmo natural da estância hidromineral mineira.
“A família do Getúlio [Vargas] ia para lá, as principais autoridades federais também, empresários paulistas. Era uma cidade muito reputada pelas águas e pelos visitantes, e é ali que Walther começa a fazer a rede de relacionamentos dele e chega a namorar a Alzirinha Vargas, filha do Getúlio.”
Como o pai comercializava café, Walther tinha muito contato com a American Coffee Corporation, do grupo Rockefeller. “Isso abre caminhos quando ele vai para os Estados Unidos e fica amigo do Nelson e do David Rockefeller [filhos de John D. Rockefeller, considerado o primeiro bilionário da história moderna]”, conta Nassif.
Além da prolífica carreira no setor privado, sua rede de relações levou Walther a também exercer uma série de cargos públicos ao longo dos anos.
Passou pelo Banco do Brasil, Ministério da Fazenda e foi embaixador em Washington, servindo sob quatro ex-presidentes: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.
Posse de Walther Moreira Salles como diretor executivo da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) em 1951, nomeado pelo presidente Getúlio Vargas
Essa ligação íntima com o poder político seria fundamental para o banqueiro fazer algumas das grandes “tacadas” empresariais que levaram à consolidação do patrimônio que faz dos Moreira Salles até hoje uma das famílias mais ricas do Brasil.
Seis grandes tacadas
Durante e após a Segunda Guerra, os governos Vargas e Gaspar Dutra lançaram uma série de planos econômicos, com objetivo de alavancar obras de infraestrutura no Brasil.
“À época, o país tinha problemas nas contas externas e havia uma grande dificuldade para conseguir autorização para importação”, observa Nassif.
Numa viagem aos EUA, Walther Moreira Salles conheceu os controladores da fabricante de máquinas pesadas Caterpillar no Brasil.
E, através de sua amizade com Herculano de Freitas, diretor da carteira de comércio exterior do Banco do Brasil, ele conseguiu se tornar representante comercial da Caterpillar em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, no primeiro negócio internacional da família que não era diretamente ligado ao café.
“Esse é o primeiro grande salto do grupo”, considera o jornalista.
A Sociedade de Tratores e Equipamentos (Sotreq) foi o primeiro negócio internacional da família Moreira Salles que não era diretamente ligado ao café
O segundo grande salto aconteceu quando Walther descobriu, através de amigos financistas europeus refugiados no Brasil devido à guerra, a existência de um novo mercado: o de dívidas de países.
A Inglaterra saiu da Segunda Guerra devendo para o mundo, lembra Costa, da Unicamp. Os ingleses então transformaram essa dívida em moeda, criando a libra Brasil, a libra Egito, a libra Suécia e assim por diante. Também elaboraram um plano de quitação da dívida a partir da venda de ativos ingleses.
Sabendo que a libra Egito valia menos do que a libra Brasil (porque existiam mais ativos ingleses no Egito), Walther criou um plano de mestre: com os dólares da exportação do café, ele comprava libras egípcias e, em Zurique, fazia um swap — isto é, uma troca de moedas — com libras Brasil. Com os créditos dessa operação, ele comprou a Brazilian Warrant, o maior ativo inglês no Brasil.
Levou junto a fazenda Cambuhy, então dedicada ao café e gado, e o maior empreendimento agrícola do Estado de São Paulo à época; e a E. Johnston, grande exportadora de café.
A Brazilian Warrant, rebatizada de Brasil Warrant (BW), serve hoje de holding (empresa controladora) para as empresas não financeiras do grupo Moreira Salles. Já a E. Johnston é a holding para a área financeira.
Em 1950, Walther comprou a Brazilian Warrant e, com ela, a fazenda Cambuhy, hoje uma das maiores produtoras de laranjas do país, localizada em Matão (SP)
Também nesse período, o Banco Moreira Salles faz a reciclagem dos títulos de Ademar de Barros, conta Nassif, na terceira grande jogada do grupo, na visão do biógrafo de Walther Moreira Salles.
Barros, quando governador de São Paulo (1963-1966), fez grandes emissões de títulos para tentar contornar o déficit das contas públicas do Estado.
“O título permitia a quem o detinha abater do imposto a pagar em São Paulo. Então bancos vendiam para seus clientes esses títulos. Isso permitiu um grande ganho para o Banco Moreira Salles à época.”
A quarta grande “sacada” do empresário, diz Nassif, foi durante a renegociação da dívida externa brasileira — Walther Moreira Salles participou de negociações da dívida externa em ao menos três momentos da história brasileira: durante os governos Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
“Como embaixador do Brasil em Washington, ele consegue um grande feito, que salva o governo Getúlio, que é um empréstimo-ponte dos Estados Unidos, porque o Brasil estava quebrado, não tinha dólar para nada”, conta o biógrafo.
“Só que, nessa negociação, ele se alia ao então subsecretário de Estado americano, Douglas Dillon, e eles passam a comprar títulos da dívida brasileira, que não estavam valendo nada, porque o Brasil estava em moratória, não conseguia pagar”, diz Nassif.
“E o Douglas Dillon teve todo o interesse em acertar o empréstimo ao Brasil, porque, saindo o empréstimo, automaticamente os títulos explodiriam de preço [porque o governo teria dinheiro para honrá-los]. Então isso foi mais um salto fantástico para o grupo.”
Douglas Dillon (dir.) foi subsecretário de Estado sob Eisenhower na década de 1950 e depois secretário do Tesouro de Kennedy
A quinta grande jogada, segundo o biógrafo, foi a compra em 1950 da maior fazenda do Brasil à época, no atual Mato Grosso do Sul: a Fazenda Bodoquena, cuja área era quase 2,5 vezes o tamanho de Luxemburgo. Em 1956, Nelson Rockefeller, da famosa família de banqueiros e industriais norte-americanos, entrou como sócio no negócio, que ficaria na família até os anos 1980.
Por fim, o sexto grande negócio dos Moreira Salles, diz Nassif, foi o investimento num mineral que até então ninguém sabia para que servia: o nióbio.
Controle de 75% do nióbio do mundo
O nióbio — hoje se sabe — é um metal de grande resistência e condutividade.
Utilizado na produção de um décimo de todo o aço do mundo, ele melhora a qualidade da liga, sendo aplicado no setor automotivo, aeroespacial, de construção, em baterias e em equipamentos de saúde.
A relação da família Moreira Salles com o nióbio começa em 1965, quando Arthur Radford, almirante da marinha dos Estados Unidos e então presidente do conselho da companhia de mineração Molycorp, convence Walther Moreira Salles a investir na produção do mineral em Araxá (MG).
O Brasil tem 98% das reservas de nióbio do mundo, seguido por Canadá e Austrália. Das reservas do país, 75% estão em Araxá, onde opera a CBMM (foto), 21% na Amazônia e 4% em Goiás
“O nióbio não tinha aplicação nenhuma e é essa companhia [a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, CBMM] que desenvolve aplicações para ele”, destaca Aline Nunes, gerente de assuntos minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). “É um caso único.”
“Eles encontraram esse mineral no subsolo, que não tinha mercado, pesquisaram para o que aquilo serviria, desenvolveram as aplicações e os produtos — o ferronióbio, os óxidos de nióbio —, e agora estão trabalhando nas baterias elétricas de recarga rápida. É uma grande verticalização”, observa a gerente do Ibram.
Segundo Nunes, o controle familiar da empresa também é algo incomum no setor de mineração, que exige investimentos iniciais muito altos e tem risco elevado.
Os Moreira Salles detêm 70% da CBMM, outros 30% foram vendidos em 2011 para dois consórcios, um japonês e coreano (15%) e outro chinês (15%), por US$ 3,9 bilhões — negócio que avaliou a fatia da família na mineradora em US$ 9 bilhões.
Em 2023, a CBMM gerou R$ 4,9 bilhões em lucro e produziu 92 mil toneladas de nióbio — o que representa mais de 75% de um mercado global estimado em 120 mil toneladas.
“A CBMM foi a ‘mina de ouro’ dos Moreira Salles”, diz Nassif.
As baterias com nióbio de carregamento ultrarrápido são a aposta da CBMM para os próximos anos
A fusão de meio trilhão
Mas nem sempre tudo deu certo para os Moreira Salles.
Tendo transformado a Casa Moreira Salles em Banco Moreira Salles, e depois em Unibanco em meados da década de 1960 — após novas fusões com outras instituições financeiras — a família viu o banco perder relevância no mercado nacional, já sob o comando de Pedro Moreira Salles, o terceiro filho de Walther, fruto de seu segundo casamento, com Elisa Margarida Gonçalves.
Nassif e Costa avaliam que, nessa época, a direção do banco tomou alguns maus passos, como a separação do banco entre atacado e varejo — áreas que atendem respectivamente empresas e pessoas físicas —, posteriormente revertida, e a demissão de alguns altos executivos de salários vultosos, cuja saída teria afetado o bom funcionamento da instituição financeira, na visão do biógrafo.
O professor da Unicamp tem ainda outra hipótese para a decadência do Unibanco, que passa pela transição entre os governos FHC e Lula, em 2003 — à época, Costa foi vice-presidente da Caixa Econômica Federal e também diretor-executivo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
Ele conta que a família sempre teve muita proximidade com a PUC-Rio — inclusive Walther Jr., Pedro e João cursaram graduação em Economia na instituição. E os economistas da PUC-Rio, incluindo os responsáveis pelo Plano Real, dominavam o governo FHC.
“Quando acaba o governo, o próprio Pedro Malan [ministro da Fazenda de FHC) se torna presidente do conselho de administração do Unibanco”, lembra Costa, observando que a estratégia foi arriscada, num momento que o governo anterior passava à oposição.
“Então, nos grandes eventos que aconteceram a partir de 2003 — o crédito consignado, bancarização da população mais pobre, retomada do crédito imobiliário, financiamento habitacional —, o Unibanco não toma parte e vai ficando para trás, caindo no ranking dos maiores bancos.”
Quando veio a crise de 2008, o Unibanco já havia recuado da terceira à quinta posição entre os maiores bancos do país e enfrentava sérias dificuldades.
“Ele só não quebrou porque, no último momento, conseguiu a fusão com o Itaú e garantiu a preservação do patrimônio”, diz Nassif
“Então, Itaú e CBMM são hoje a base da fortuna da família.”
Roberto Setubal (esq.), do Itaú, e Pedro Moreira Salles, do Unibanco, durante o anúncio da fusão que gerou uma instituição com R$ 575 bilhões em ativos
Laranjas e Havaianas
Mas os investimentos dos Moreira Salles não param por aí. A BW Gestão de Investimentos, empresa que administra a fortuna da família, declarou em 2024 que geria então R$ 54,1 bilhões em ativos.
A teia de empresas controladas pelos Moreira Salles é complexa e inclui, além da participação de cerca de 33% no Itaú Unibanco e dos 70% da CBMM, o controle da Cambuhy Agrícola, produtora de laranja e cana-de-açucar com mais de 14.124 hectares em Matão (SP). No ano passado, a Cambuhy anunciou investimento de R$ 1,2 bilhão no Mato Grosso do Sul.
Em 2017, a família também comprou o controle da Alpargatas, dona das sandálias Havaianas
Em 2017, a família também comprou o controle da Alpargatas, dona das sandálias Havaianas — mais um dos diversos investimentos do grupo no Brasil e exterior.
Fundada em 1907, a empresa foi controlada pelo grupo Camargo Corrêa entre 1982 e 2015. Até que a Camargo, às voltas com a Lava-Jato, vendeu o negócio para o grupo J&F, controlador da JBS.
Quando a J&F também se enredou em problemas com a Justiça, a gestora Cambuhy, a holding Itaúsa, das famílias Setubal e Villela (ligadas ao banco Itaú) e a Brasil Warrant, dos Moreira Salles, assumiram o controle da Alpargatas.
Fernando Nogueira da Costa, da Unicamp, que estudou durante anos a história dos bancos no Brasil, reconhece que é difícil acompanhar a complexidade da formação das fortunas dos super-ricos, mas destaca que esse esforço é fundamental.
“Para a gente entender o mundo, tem que entender a riqueza”, diz o pesquisador.