Em função de operações policiais, tiroteios e confrontos, as principais vias expressas do Rio foram transformadas em verdadeiras zonas de medo para motoristas e passageiros. Só neste mês, até a última quarta-feira, a Avenida Brasil foi interditada por forças de segurança pelo menos três vezes, o equivalente a uma interdição a cada quatro dias, segundo levantamento feito pelo GLOBO, com base nos dados do Centro de Operações Rio (COR). Em dois meses, pelo menos sete bloqueios paralisaram a Avenida Brasil e duas interdições foram feitas na Linha Vermelha e na Linha Amarela. Para os motoristas e passageiros que ficam no meio disso tudo, o medo fala mais alto do que qualquer outra coisa, e os números escancaram essa realidade: só no entorno da Avenida Brasil foram registrados 52 tiroteios no ano passado. Neste ano, até a última quarta-feira, já são oito confrontos armados na região, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado.
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— Minha mãe entrou em pânico. Ficou no chão, em posição fetal, chorando e chamando por Nossa Senhora. Foi horrível e desesperador. Eu achei mesmo que ia morrer — conta Anna Clara Fernandes que, junto com a mãe, é garçonete em um restaurante na Penha, Zona Norte do Rio. A caminho do trabalho, as duas presenciaram, dentro de um BRT, o intenso tiroteio que paralisou a Avenida Brasil, nos dois sentidos, na altura da Cidade Alta, na tarde da última quarta-feira.
Durante a tarde da última quarta-feira, as polícias Civil e Militar tiveram que fechar a Avenida Brasil para cercar Vigário Geral, Parada de Lucas e Cidade Alta, em busca de Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, chefe do tráfico e fundador do temido Complexo de Israel. Em meio ao caos, quatro pessoas foram baleadas. Segundo o Secretário de Segurança, Victor dos Santos, o objetivo da operação foi “evitar um banho de sangue”.
Vídeos que circulam nas redes sociais mostram passageiros se abaixando dentro de ônibus, motoristas largando seus carros e correndo para trás de muretas, famílias inteiras jogadas no chão, presas em meio ao fogo cruzado. O pânico era visível, estampado nos gritos e na correria de quem só queria sair dali com vida.
A cena de guerra, com veículos parados e pilhas de pneus em chamas formando barreiras, foi resultado de mais uma operação policial na cidade que fechou vias expressas. Enquanto as forças de segurança tentavam capturar o chefe do tráfico do Complexo de Israel, a cidade parava – e, para quem estava preso no meio do caos, seja em ônibus ou carros, o pânico era inevitável. No fim, apesar do cerco e da tensão, o criminoso conseguiu escapar.
De acordo com a Companhia de Engenharia e Tráfego (CET-Rio), de agosto do ano passado, a janeiro deste ano, as forças de segurança fecharam dez vezes a Avenida Brasil por motivos de “confronto ou tiroteios”. Os principais pontos de interdição foram: Irajá, Cidade Alta, Rubens Vaz, Fiocruz, Ceasa, e Mercado São Sebastião.
Ana Clara, moradora de Anchieta, na Zona Norte, diz que quem depende do transporte público nessas vias já sai de casa ciente do risco de vida.
— Naquele dia, antes de sairmos de casa, olhamos nas redes sociais para ver se tinha alguma informação de como estava a situação da Avenida Brasil, mas ainda não havia nada. Quem precisa pegar a via todos os dias não tem para onde ir em dias de operação. Ficamos presos e vulneráveis. Se a gente fica dentro do ônibus corre o risco de tomar um tiro lá dentro. E se a gente sair não tem pra onde correr.
Esse medo tem fundamento. Um levantamento feito pelo Instituto Fogo Cruzado revela a dura realidade enfrentada por quem circula pela Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Só no entorno da Avenida Brasil, foram 52 tiroteios em 2024. Este ano, até quarta-feira, já somam 8 tiroteios. A Linha Vermelha também foi palco de violência, com 7 tiroteios no ano passado e 2 neste começo de 2025. A Linha Amarela, por sua vez, acumulou 14 tiroteios em 2024 e 3 nos primeiros meses de 2025. Para motoristas, passageiros e moradores da região, esses números não são apenas estatísticas – são a prova de um medo constante que os acompanha em cada trajeto.
Ainda segundo o Instituto Fogo Cruzado, entre 2024 e a última quarta-feira (12), as vias expressas do Rio foram palco de pelo menos 68 ações policiais, 73 tentativas de roubo, 10 casos de homicídio ou tentativa, dois confrontos entre facções criminosas e um episódio de sequestro ou cárcere privado.
O bloqueio da Avenida Brasil na quarta-feira é apenas mais um dos diversos casos registrados. No início deste mês, Alexander de Araujo Carvalho, agente do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), de 46 anos, foi assassinado durante um arrastão na Linha Amarela, na altura de Bonsucesso, na Zona Norte do Rio. O caso provocou o fechamento das pistas da Linha Amarela por cerca de três horas.
Na última terça-feira, a Polícia Militar interditou um trecho da Avenida Brasil na altura da Vila Kennedy, na Zona Oeste. Em meio ao caos, motoristas relataram tiroteios e alguns veículos chegaram a trafegar na contramão. O bloqueio ocorreu devido a uma operação da PM que, em nota, afirmou ter como objetivo “desarticular ações de criminosos locais”.
No final do mês passado, no dia 31 de janeiro, a Avenida Brasil precisou ser parada por cerca de 35 minutos, segundo o Centro de Operações Rio (COR), devido a operações policiais que envolviam ao menos 10 comunidades do Rio e de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. No mesmo dia, a Linha Vermelha ficou fechada por 20 minutos. Durante a ação, um tenente do 41º BPM (Irajá), identificado como José Oliveira de Amorim, de 35 anos, foi baleado e morreu na Comunidade Furquim Mendes.
Questionado sobre as recorrentes interdições das vias, o Prefeito do Rio, Eduardo Paes disse que é “muito ruim o que acontece na cidade”, mas deu apoio à ação policial.
— Eu acho que essa é uma notícia boa, nesse caso. Porque mostra que a polícia está agindo e, pelo jeito, cercando um delinquente, um vagabundo, um marginal, que está aterrorizando uma área da cidade que não é de comunidade. Parada de Lucas não é uma comunidade, é um bairro. Brás de Pina também. É uma loucura que a gente aceite que áreas desse tamanho sejam dominadas — disse o prefeito.
Em nota ao GLOBO, a Secretaria do Estado de Polícia Militar do Rio informou que “os critérios para o fechamento das vias são analisados estrategicamente pelo comando das operações, obedecendo às características locais, das vias e do espaço urbano de atuação, visando a preservação da integridade da população”.
A PM ainda disse que as mobilizações policiais, sejam elas previamente planejadas ou realizadas em resposta a eventos inesperados, seguem a dinâmica do contexto em que ocorrem. E explicou que, na maioria das vezes, a secretaria “interrompe o tráfego em vias de maior fluxo e próximas a locais de atuação que possam apresentar situações que coloquem em risco a vida de motoristas e passageiros, sempre propiciadas pela resposta inconsequente dos grupos criminosos”.
Impacto no dia a dia dos passageiros
De acordo com Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, o fechamento das vias tem impacto direto no dia a dia dos trabalhadores e passageiros que dependem do transporte público, como ônibus e BRT. Segundo ele, para quem faz o trajeto não há outras alternativas a não ser a melhoria na segurança pública.
— A Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela são vias cruciais para a mobilidade urbana no Rio de Janeiro, porque nós não temos transporte em massa que possa substituir o “rodoviarismo” que hoje impera na cidade. Dependemos do pneu. Então isso prejudica muito a população, realmente dá um impacto muito grande e não há alternativa, a alternativa é a segurança pública. Só com pesados investimentos em metrô, principalmente subterrâneos, poderia melhorar muito essa questão. Mesmo assim, os metrôs para essas áreas que atingem a Linha Vermelha e a Avenida Brasil são mais difíceis de acontecer no futuro — disse o especialista em mobilidade urbana.
Para Patrick Cardoso Cordeiro, de 26 anos, que mora em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, e trabalha na Penha, Zona Norte, beirando a Avenida Brasil, pegar outro tipo de transporte, que não seja o BRT ou ônibus, que o deixam bem perto do trabalho, significaria um trajeto mais caro e cansativo, repleto de baldeações, tornando a rotina ainda mais desgastante. Assim como ele, milhares de cariocas enfrentam esse dilema diariamente: arriscar-se nas vias tomadas pela violência ou arcar com um custo que pesa no bolso.
— Na quarta-feira, na hora que eu estava indo embora começou o tiroteio e tive que ficar na empresa. Por mim, não pegava mais esse caminho, mas a realidade é que se eu for pensar em alternativas, teria que dar muitas voltas até chegar em casa, seriam muitas baldeações para cortar esse caminho que fica mais curto pela avenida. Eu me sinto com muito medo de ir de BRT, até desligo meu fone e venho olhando para os lados para ver se tem alguma movimentação estranha. Então, além do trajeto, eu não sei se vou chegar seguro em casa — desabafou Carlos Eduardo, que trabalha na área da mecânica industrial, e pega a linha 60 do BRT, que liga Deodoro até o Terminal Gentileza.
Para além do perigo de ficar sem saída nessas interdições, a professora e engenheira de transportes Eva Vider, da Escola Politécnica da UFRJ, explica que a cada bloqueio de uma faixa de tráfego, seja por um acidente, uma operação policial ou um tiroteio, “reduz significativamente a capacidade de circulação da via”, desacelerando a cidade.
— Qualquer motivo que acarrete o impedimento de circulação faz com que, aproximadamente, dois mil veículos deixem de passar por hora, causando congestionamentos e afetando diretamente a mobilidade urbana. O problema transcende à esfera técnica da engenharia de trânsito, impactando negativamente na mobilidade e, como consequência, na economia da cidade como um todo também — explicou a professora.
*Estagiária sob supervisão de Giampaolo Morgado Braga