O recorde de calor batido em 2024, primeiro ano com temperatura 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, pode não ter sido um acontecimento isolado. Dois estudos publicados na revista Nature Climate Change sugerem que a Terra já está no caminho que o Acordo de Paris, assinado em 2015, pretendia evitar. Isso não significa que a meta estabelecida no tratado seja impossível. Mas os cientistas alertam: para não colocar o planeta em um cenário catastrófico, são urgentes medidas de mitigação, ou seja, que ataquem a principal causa das mudanças climáticas.
Entre junho de 2023 e junho de 2024, a temperatura média global ficou, mês a mês, acima dos níveis considerados desejáveis pelo Acordo de Paris. A marca de 1,5ºC , em comparação ao século 19, não é aleatória, mas baseada em evidências científicas, que projetam catástrofes ambientais para diferentes cenários de aumento nos termômetros. Algumas das consequências previstas há 10 anos materializaram-se mais cedo do que o imaginado, como o aumento na frequência e intensidade de secas, inundações, tufões e incêndios florestais.
Até agora, não estava claro, porém, o impacto de 12 meses seguidos com aumento de temperatura acima de 1,5ºC nas metas de Paris. O próprio Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), organização das Nações Unidas que reúne cientistas independentes, afirma que “a ocorrência mudança na temperatura da superfície global acima de um certo nível, por exemplo 1,5°C ou 2ºC, em anos individuais não implica que esse nível de aquecimento global tenha sido atingido”, diz um dos relatórios do grupo.
O ano é uma escala de tempo muito curta, por isso, os documentos produzidos pelo IPCC avaliam as mudanças de temperatura em períodos de, pelo menos, duas décadas. Contudo, as novas análises sobre os limiares de aquecimento excedidos nos últimos 12 meses feitas em dois estudos independentes — um da Alemanha, outro do Canadá — sugerem que a Terra já entrou na era em que a meta de 1,5ºC será ultrapassada consistentemente.
“Mostramos que, sem uma mitigação climática muito rigorosa, 2024 será o primeiro de um período de 20 anos com um aquecimento médio de 1,5ºC”, escreveu o autor de um dos estudos, Alex Cannon, do Envorinment and Climate Change Canadá. Ele calcula que há uma chance entre 60% a 80% de que o limite de Paris já tenha sido ultrapassado.
“Ambos os estudos confirmam, de forma robusta, que, mesmo considerando o calor do El Niño (fenômeno natural ocorrido em 2024 responsável por parte da elevação da temperatura), a persistência e a magnitude dos excessos de temperatura globais em 2024 significam que, para todos os efeitos, a ultrapassagem do limite de 1,5ºC é uma realidade”, comenta Richard Allan, professor de Ciências Climáticas da Universidade de Reading, no Reino Unido, que não participou das pesquisas. “Precisamos redobrar os esforços para evitar o limite ainda mais perigoso de 2ºC, cortando rápida e maciçamente as emissões de gases de efeito estufa.”
O alerta dos cientistas chegou em um momento-chave da Conferência do Clima de Belém, a COP30, que será realizada no Brasil, em novembro. Ontem seria a data-limite para os países signatários do Acordo de Paris entregarem as novas metas individuais de redução dos gases de efeito estufa, as chamadas Contribuições Determinadas Nacionalmente (NDC). Porém, como apenas 10 de 197 nações enviaram o documento à ONU, o secretário-executivo da Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas, Simon Stiell, esticou o prazo para setembro, dois meses antes do início da COP, 10 de novembro.
Segundo Pep Canadell, diretor-executivo do Projeto Carbono Global, os estudos publicados na Nature Climate Change são um alerta a mais para que os países se debrucem sobre o que Simon Stiell definiu como “os documentos mais importantes do século”, apresentando metas robustas de mitigação. “Não importa como olhemos para a temperatura global e sua evolução nos próximos anos, com esses novos estudos e tudo o que já sabíamos, agora há ampla evidência de que a meta mais importante do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C foi perdida. E, a menos que ações mais agressivas de mitigação sejam tomadas rapidamente, o mesmo acontecerá com a meta de evitar o 2 °C”, disse, em nota.
Canadell avalia que “isso não é motivo para jogar a toalha, mas, sim, para afiar as políticas climáticas e energéticas que nos levarão a um mundo descarbonizado”. “A mudança climática é como uma ladeira escorregadia sem fundo, então, não há limite para os danos que ela pode causar a nossa economia, saúde e meio ambiente. O que queremos fazer é aplicar os freios o mais forte que pudermos para que os impactos não fiquem maiores.”
“Nossos resultados também indicam que, ao desacelerar rapidamente a taxa de aquecimento, uma mitigação rigorosa de curto prazo tem o potencial de reduzir substancialmente os riscos de exceder o nível de 1,5 °C logo após 2024”, escreveram, na Nature Climate Change, pesquisadores da Helmholtz Centre for Environmental Research-UFZ, em Leipzig, na Alemanha. “Mas somente uma mitigação rápida de curto prazo pode, efetivamente, limitar o pico de aquecimento necessário para manter o aumento de temperatura bem abaixo de 2 °C com alta probabilidade. Não é um momento de desespero, mas um chamado à ação.”
Um estudo publicado na Nature Climate Change aponta que é muito provável que já estejamos dentro da janela de 20 anos em que a temperatura média excederá 1,5 °C, com base nos cenários que estamos observando. Essa tendência só pode ser corrigida por medidas extremamente drásticas de redução de emissões. O outro artigo menciona que 12 meses consecutivos acima da anomalia de 1,5 °C indicam que é muito provável que já tenhamos ultrapassado o limite de 1,5 °C. São pesquisas baseadas em modelos calibrados que consideram a variabilidade natural. Embora possamos pensar que uma anomalia de 1,5°C em um único ano não deve causar alarme porque no ano que vem a temperatura pode cair, esses estudos nos dizem o oposto: se atingimos esse nível em 2024, é provável que já tenhamos excedido o limite. Infelizmente, isso significa que a urgência se intensifica. Não queremos ultrapassar significativamente 1,5°C porque, além desse ponto, as consequências se tornam enormemente complicadas, e a única solução viável agora é reduzir drasticamente as emissões.
Anna Cabré Albós, física climática, oceanógrafa e consultora de pesquisa na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos
Como a maioria da vegetação aquática, a alga marinha está sendo impactada negativamente pelas mudanças climáticas. O aquecimento das temperaturas oceânicas levou a temporadas mais curtas de cultivo e colheita, incluindo uma das espécies mais comumente cultivadas, a açucareira. A perda de populações pode impactar significativamente os ecossistemas e, potencialmente, a crescente demanda por alimentos, rações, fertilizantes, medicamentos e cosméticos agrícolas sustentáveis.
Para dar à alga marinha uma chance contra as mudanças climáticas, cientistas da Woods Hole Oceanographic Institution (WHOI) identificaram espécies com adaptações naturais para lidar com o calor. Em um novo estudo publicado no Journal of Applied Phycology, especialistas da WHOI descrevem novas cepas que podem ser mais resilientes em águas mais quentes.
Os pesquisadores primeiro avaliaram a tolerância ao calor dos gametófitos da alga marinha, os estágios masculino e feminino microscópicos que fertilizam e produzem lâminas do organismo. Essas estruturas foram isoladas de 14 populações diferentes coletadas em águas costeiras entre Nova York e Maine, nos Estados Unidos. Antes de testar sua tolerância a temperaturas tão altas quanto 24 °C, elas foram cultivadas em um ambiente de laboratório por quatro anos e meio anos até a segunda rodada de pesquisa.
Na segunda fase, gametófitos que eram mais tolerantes ao calor foram cruzados com outras linhagens também resilientes. Em seguida, a cepa resultante foi cruzada àquelas mais sensíveis a temperaturas altas. Os pesquisadores, então, testaram a resistência ao calor de seus descendentes (lâminas de algas) em um ambiente controlado.
“Há diversidade genética entre as populações de algas açucaradas, então, é provável que algumas já tenham adaptações úteis para lidar com temperaturas mais altas”, disse Sara Gonzalez, pesquisadora convidada do Departamento de Física Aplicada e Engenharia Oceânica do WHOI e principal autora do estudo. “Descobrimos que, quando cruzamos gametófitos que identificamos como tolerantes ao calor, eles produziram lâminas de algas que cresceram melhor sob estresse térmico em comparação com a prole de gametófitos que não eram tolerantes ao calor”.
“As algas são incrivelmente versáteis. Elas também podem ser convertidas em novas fontes de combustível e, potencialmente, reduzir os gases de efeito estufa e nossa dependência de combustíveis fósseis”, disse Scott Lindell, especialista em pesquisa em tecnologia de aquicultura e coautor do estudo, do WHOI. “Em um mundo mais quente e seco do futuro, será difícil encontrar um recurso melhor para biocombustíveis do que algas marinhas cultivadas. Esse estudo nos permite acelerar a criação de linhagens de algas tolerantes ao calor, ajudando assim a sustentar a indústria.”
Pesquisas futuras podem abordar se um dos “pais” das algas transfere mais tolerância ao calor para seus descendentes. “Um tamanho de amostra maior e mais trabalho também podem mostrar qual parte dos genes das algas está relacionada à tolerância ao calor”, explicou Lindell.