Churchill, Bolsonaro e as joias

Em 1945, numa reunião no Egito, o rei da Arábia Saudita deu a Churchill trajes típicos, joias e armas cravejadas de brilhantes que hoje valeriam R$ 750 mil. No mesmo dia, ao jantar com os seus assessores, o primeiro-ministro britânico experimentou jovialmente os presentes —não há fotos da cena— e os incorporou ao Tesouro britânico (Andrew Roberts, Churchill, p. 954-955).

Em 2021, o governo saudita enviou a Jair Bolsonaro e à então primeira-dama, Michelle, joias e relógios avaliados em R$ 5,5 milhões. O kit masculino passou despercebido; o feminino foi apreendido pela Receita Federal, que resistiu à pressão para liberá-lo nos últimos dias do mandato. Em 2019, em visita àquele país, o ex-presidente já recebera outras joias e um Rolex, depois vendido (e recomprado) nos Estados Unidos.

No momento em que a Justiça põe sob lupa os possíveis crimes do ex-presidente, é importante lembrar aquele que primeiro levou o seu antigo ajudante de ordens e hoje delator, o tenente-coronel Mauro Cid, a ter de dar explicações.

O estatuto dos servidores públicos e o código de conduta da alta administração federal proíbem o recebimento de presentes, mas não se aplicam ao presidente da República. Este segue regras especiais (lei 8.394/91 e decreto 4.344/2002), cujo alcance o Tribunal de Contas da União firmou em 2016 (acórdão 2.255). Em suma, elas dizem serem bens pessoais do presidente —garantidos à União a preferência em caso de venda e o poder de impedir alienações para o exterior— os documentos não administrativos e os livros angariados durante o mandato, desde que não recebidos em audiências com chefes de Estado e de governo estrangeiros. Presentes de qualquer outra espécie só admitem apropriação privada se forem personalíssimos ou de consumo direto.

Destituídas de maior valor cultural e não recebidas em evento oficial, as joias em princípio poderiam qualificar-se como bens particulares. Mas o valor também foi um critério adotado pelo TCU, que rechaça como absurda a ideia de “uma grande esmeralda” ou “um Picasso” passarem ao patrimônio do presidente, quaisquer que sejam as circunstâncias da sua entrega por uma nação amiga.

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Resta saber que crimes podem ter sido cometidos.

Consideradas desde sempre bens públicos, como aponta o TCU, as joias não se submeteriam a tributos na importação, o que afasta a ideia de descaminho (fraude fiscal nas operações de importação e exportação). A análise se dirige, portanto, para o peculato (apropriação por agente público de bem detido em virtude do cargo, com pena prevista de 2 a 12 anos de reclusão, além de multa).

Caso a posição do TCU seja superada em juízo, e se conclua que as joias eram mesmo bens particulares, o ex-presidente estará livre de consequências fiscais quanto às que foram apreendidas.

O perdimento —pena aplicada pela Receita Federal após o prazo de defesa do viajante— exclui os tributos incidentes na importação (Imposto de Importação, PIS/Cofins, IPI e ICMS), seja por lei expressa, seja por preceder o seu fato gerador, que é o desembaraço aduaneiro. Assim, deveria excluir também quaisquer efeitos criminais, pois não se frauda tributo que não chegou a ser devido —embora o Superior Tribunal de Justiça tenha visão contrária no particular.

O efeito será oposto, porém, quanto aos dois conjuntos de joias que, não detectados pelo fisco, ingressaram no país em 2019 e 2021. Constituindo bens privados (essa é a premissa neste cenário alternativo), deveriam ter sido declarados e tributados na entrada. Não o tendo sido, estará configurado o descaminho, cuja pena é de 3 a 8 anos de reclusão, mais multa. O pagamento antes do recebimento da denúncia talvez extinga a punibilidade do delito —o que o STJ repele, mas o Supremo Tribunal Federal já admitiu algumas vezes.

Por ora, apurações sobre a adulteração do cartão de vacina e a tentativa de golpe de Estado avançam com maior velocidade no Judiciário. Não serão, contudo, as únicas batalhas que o ex-presidente terá de enfrentar.

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